“Mmmmm.” Estalos de dedos. Passos apressados.
“Mmmmm.” Ela não parava de cantar por dentro.
Mas, quando a voz tentava sair, só escapava um tímido “mmmmmm”.
Lara era uma cigarra… um pouco diferente, digamos.
Ela não sabia cantar.
Mesmo assim, todos os dias corria para espiar o coral da cidade, que ensaiava para a grande Festa de Ação de Graças. Ficava ali, agachadinha, olhando pelas frestas da porta… e, por dentro, seguia cantando.
“Mmmmm.” Sem parar.
Ela sabia a melodia de cor. A música estava inteirinha na cabeça.
Mas não conseguia colocar pra fora. Só conseguia o “mmmm… mmmm…” em pensamento.
— Lara?
— Oi? — respondeu ela, como quem foi pega de surpresa.
— O que você tá fazendo aí abaixada?
— Tô procurando meus brincos… caíram por aqui — mentiu Lara, com o coração acelerado.
Risadinhas ao fundo. Era o grupo da Lisa, a cigarra mais popular (e malvada) da cidade.
— Ela só tá espiando. Já que não canta nada mesmo… — disparou Lisa.
As outras cigarras riram. Lisa se alimentava dessas risadinhas. Era como se cada uma fosse um aplauso incentivando mais crueldade.
— Já eu — continuou Lisa, com ar de superioridade — canto como se respirasse. “Ahhh, ahhh, ahhhh”. Ouça, Lara!
— Fui escolhida como vocalista principal do coral este ano. Sucesso total!
— Que bom. Fico feliz por você — respondeu Lara, com a cabeça baixa e a alma murcha.
Mas Lisa não parou:
— Deve ser bem difícil pra sua família, né? Todo mundo na plateia vendo o coral… e você lá, sem dar orgulho como a gente.
As risadas aumentaram.
— Você está enganada, Lisa — disse a voz firme do pai de Lara, que ouvia tudo de longe.
— A Lara é o nosso orgulho. E tem muitos talentos pelos quais nos orgulhamos, sim.
— Pai! — disse Lara, correndo para os braços dele como quem encontra abrigo depois de uma tempestade.
O grupinho de cigarras aos poucos foi se dispersando, deixando apenas Lara e seu pai ali, do lado de fora. Ele limpou uma lágrima solitária que descia pelo rosto da filha.
— Pai… ela tem razão. Eu sou a única cigarra que não canta. Não dou orgulho pra vocês.
— Filha… claro que não. Você é o nosso maior orgulho. O meu, e o da sua mãe, que tá lá no céu sorrindo pra você. Ser diferente não é algo ruim. Só porque o mundo espera que você seja de um jeito, não quer dizer que você tenha que ser.
— Obrigada, papai… mas…
— Mas nada, filha. Você tem tantos outros talentos. Pode não cantar… mas batuca como ninguém! E nem todo mundo sabe fazer isso, viu?
Lara sorriu. Pela primeira vez, sentiu que talvez… tudo bem ser como ela era.
Foi quando o maestro saiu correndo do ensaio, desesperado.
— A apresentação vai ser cancelada! Nosso pianista ficou doente e não poderá tocar!
— Pai… — disse Lara, com os olhos brilhando — vem comigo! Tive uma ideia!
Ela puxou o pai pela mão e correu até o maestro.
— Senhor maestro… eu sei toda a música!
— Ah, minha querida, isso eu também sei. Mas o que eu preciso agora é de um músico que toque piano!
Lara, então, fechou os olhos… respirou fundo…
E começou:
Estalos de dedos. Batidas dos pés.
“Mmmmm… mmmmmm… mmmmmm…”
O maestro arregalou os olhos. Chamou Lisa e pediu:
— Cante seu trecho, por favor.
Lisa, confusa, cantou:
“Ah ah ah ahhhhhhhhh…”
E Lara continuava firme nos estalos, nas batidas… no “mmmmmm”.
Logo o coral inteiro saiu para fora do salão e se juntou:
“Ah ah ah ahhhhhh” — “mmmmmmm” — “ah mmmm ahhhh mmmm”
E tudo fazia sentido. Como um arranjo perfeito de diferenças.
— Você está contratada! — exclamou o maestro. — Vai ser nossa nova musicista!
No dia da apresentação, lá estava ela: Lara.
Nervosa, feliz, e com o coração saltando no peito.
No meio da multidão, os olhinhos do pai brilhavam de orgulho.
E então começou:
Estalo de dedos.
Batida de pé.
“Mmmmm… mmmm… mmmm…”
E o coral: “Ah ah ah ahhhhhhhhhh…”
“Mmmmm… mmmm… mmmm…” Ah ah ah ahhhhhhhhhh…” “Mmmmmm… Ah!”
Foi uma das apresentações mais lindas da história da cidade das cigarras.
— Viu, filha? — disse o pai, ao fim — não é porque você não faz o que todo mundo faz… que não tem valor.
Ser diferente é lindo. Nunca mais deixe ninguém te fazer sentir menor por isso.
— Obrigada, papai.
— Lara? — chamou a Senhora Lua, mãe da Lisa.
— Oi, Senhora Lua.
— A Lisa tem algo a dizer, não é, Lisa?
— Ai, mãe… Oi, Lara.
— Oi, Lisa.
— Mandou bem, viu? A gente se vê no ensaio semana que vem?
— Claro. Estarei lá!
E assim terminou mais um dia na cidade das cigarras, onde a música nunca para.
Estalo de dedos. Batida de pé.
“Mmmmm…”
“Ah ah ahhhh…”
“Mmmmm… ah…”
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